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Uma casa e seus Descendentes

Eu gostaria de passar diante de ti, prezado leitor, as imagens de três casas e três gerações. Infelizmente isso não é possível, mesmo que as três estejam na terra e no chão do mesmo proprietário. Assim tenho que lhe pedir que em espírito participe e ouça o que essas casas têm a dizer.

Talvez você ria da impertinência, porque não pode imaginar que uma casa possa te dizer qualquer coisa. Imagina todavia se as coisas que estão ao nosso redor não nos transmitem bem mais do que podemos ver com os olhos. Não apenas o homem mas cada coisa tem uma linguagem e através de uma atitude silenciosa e ouvinte, podemos captar um enriquecimento de valor. Apenas depois de ouvir a história de um objeto ou pessoa é que podemos lhe dar o devido valor. Este conhecimento suscita em nós uma reverência diante de pessoas e objetos e é dela que fala o grande poeta Goethe, dizendo que nós não a trazemos para este mundo para que seja tudo, mas que depende dela “que o homem seja um homem em todos os sentidos”. E ele segue adiante “o que seria de mim se eu não tivesse aprendido a ter respeito pelas outras pessoas”. Do respeito nasce a reverência e da reverência o verdadeiro temor a Deus. Pessoas reverentes são pessoas presenteadas e por isso são pessoas felizes e agradecidas. Vamos ouvir o que três casas têm para nos contar.

 (pág. 361)

1ª Casa: Olhem para mim! Eu sou a casa mais velha de toda a redondeza e já existia quando fundaram esta comunidade que agora festeja seu centenário.

2ª Casa: Que tu de fato és velha nem precisas nos contar, podemos ver isso de longe.

3ª Casa: Compara apenas as tuas paredes externas com as minhas, como eu estou branca e limpa, quando tuas paredes, em contrapartida, cujo reboco está caindo em vários lugares deixando à mostra as pedras de Grês.

1ª Casa: Tens razão, casa nova, minhas paredes são bem diferentes das tuas bonitas. As pedras foram dedicadamente recordadas há mais de cem anos pelo meu construtor e o reboco, que foi feito de uma mistura de areia, cal e cabelo de cavalo não agüentou. As fortes vigas e os muros agüentam até hoje cada tempestade. E quem de vocês duas tem uma porta de entrada mais bonita que a minha? Pensem uma vez em que circunstâncias ela foi feita e vocês vão se admirar e emocionar ao se darem conta do quanto as pessoas tinham tempo e vontade para o belo, mesmo em luta contra a floresta selvagem e seus perigos, na missão de construir para si um novo lugar para viver. Eu, como casa, deveria significar, para eles, mais do que apenas proteção contra animais selvagens, mau tempo ou diferenças climáticas, eu tinha que ser um lar para eles.

2ª Casa: Diferenças climáticas? De onde vieram estas pessoas que te construíram há tanto tempo?

1ª Casa: Meu construtor, um carpinteiro, imigrou para cá de um lugar chamado Hunsrück. Isso foi na metade do século passado. Durante a travessia marítima conheceu uma conterrânea que queria vir ao Brasil com seus pais e um irmão. O carpinteiro, então, noivou e casou com ela. Na chegada em São Leopoldo, eles, inicialmente, ficaram separados por bom tempo até se encontrarem outra vez. Enquanto as mulheres dos imigrantes ficaram hospedadas numa casa para imigrantes no atual bairro de Feitoria Velha, em São Leopoldo, os homens, por sua vez, se encarregaram de começar a árdua luta contra a floresta. Uma parte dos homens mudou-se Rio dos Sinos acima, em direção à foz do Rio Santa Maria, para a colônia de Santa Maria do Mundo Novo. Esta colônia, fundada em 1846, havia sido vendida pelo preço de 300 mil réis o lote, com um pagamento a longo prazo, por Tristão Monteiro, quando ele loteou a terra que tinha adquirido da Colônia de São Leopoldo. Entre estes homens estava também o jovem carpinteiro, que só pôde buscar sua jovem esposa quando o primeiro filho já tinha nascido. A este filho seguiram-se, durante os anos seguintes, quatro irmãos e três irmãs. Os meus quartos encheram-se de choro e risada de crianças e logo ficaram muito pequenos, uma vez que os pais da esposa e o irmão dela também se mudaram para cá. O meu senhor deixou de lado a plaina e o serrote e foi trabalhar duro na plantação. O irmão da esposa procurava pedras semipreciosas na região, as quais ele mandava para a Alemanha para serem lapidadas no Hunsrück, que era conhecido e afamado pela lapidação de pedras. Os velhos faleceram e foram sepultados no cemitério do outro lado da Igreja, construída em 1863.

3ª Casa: Casa velha, tu falas de uma colônia chamada Santa Maria do Mundo Novo, mas tanto quanto eu sei, este lugar se chama Igrejinha.

2ª Casa: Neste caso posso responder-te: o nome foi mudado quando eu era jovem. A nova colônia foi dividida em Alta Santa Maria (Lappland – terra dos trapos e dos bobos), Média Santa Maria (Judengasse – beco dos judeus) e Baixa Santa Maria (Schlechtes Viertel – quarteirão ruim). Quando, depois da 1ª Guerra mundial, foi construída a estrada de ferro, de Novo Hamburgo até Canela, este lugar deveria ter um novo nome. O nome escolhido foi “Igrejinha”, talvez porque a torre da igreja atrai de imediato o olhar das pessoas postadas nos morros, em cujo centro está inserido o nosso lugarejo.

3ª Casa: Se tu sabes tanto da história da região, então (pág. 363) também saberás contar sobre o tempo em que foi fundada a Comunidade Evangélica?

1ª Casa: É claro que eu sei disso! Eu presenciei a reunião dos imigrantes que muitas vezes recorriam às suas Bíblias e Livros de Canto para renovar forças para a luta e vida e – não esquecendo – contra a saudade que sentiam de sua terra natal Hunsrück. Mas onde estava o curador de almas em quem deveriam confiar? Ele tinha que vir de Campo Bom ou de Hamburger Berg (Hamburgo velho) e, nestas condições, só podia vir de vez em quando e sem regularidade. É compreensível, portanto, que algumas pessoas procurassem, nas imediações, alguém que pudesse ser considerado “pastor”. Este escolhido foi um Schäfer alfaiate, que era também professor. Ele se dedicou de maneira íntegra a servir a sua comunidade. E eu sei que ele ensaiava sermões lá fora nas plantações, onde seus primeiros ouvintes eram os pés de milho. Ele não se preocupava em impor a seus ouvintes coisas difíceis ou passagens bíblicas obscuras, mas usava imagens e exemplos da vida cotidiana que todos entendiam. Quando um pastor verdadeiro, recém chegado da Alemanha, veio à região de Santa Maria do Mundo Novo, o “pastor que se fez sozinho” teve de retirar-se após árdua luta de seus seguidores. Como marca do fim de seu “mandato”, o banquinho que ele usava para a pregação – porque ele era muito baixinho – foi jogado do púlpito. Apenas depois de muitos anos a paz e a concórdia retornaram à comunidade, graças ao trabalho dedicado dos pastores Roos e Dietschi.

2ª Casa: Puxa, que tempos eram esses! Uma coisa como esta eu nunca tive que presenciar. Eu só me lembro que eram tempos difíceis durante os anos das duas Guerras Mundiais, quando a língua alemã foi proibida e nem o pastor, nem os membros da comunidade dominavam a língua nacional.

3ª Casa: Que idade tu tens, segunda casa?

2ª Casa: eu fui construída no início da I Guerra Mundial, em 1914. Meu construtor era o filho mais novo desta venerável casa vizinha. Ele trouxe as pedras para construção das minhas paredes de sua própria pedreira. A madeira ele comprou em Taquara a 14 mil réis a dúzia. Eu custei, com meus seis grandes quartos o irrisório preço de Re 1:035 000.

3ª Casa: Então eu custei uma pequena fortuna a mais, o que se deve provavelmente à inflação, da qual eu ouço sempre tanto falar. Eu fui feita pelo filho mais velho do teu construtor e proprietário, 2ª Casa! Isso foi nos anos de 1946/47. Eu sou – se comparada a vocês – uma casa muito mais elegante! Eu já fui feita logo com instalações sanitárias e elétricas, nós temos um rádio e um refrigerador e poderíamos ter uma televisão se a gente quisesse. Isso vocês duas não conheceram, não é verdade? Vocês, pelo menos tinham um pouco de alegria e divertimento de suas paredes, considerando que não tinham nenhum conforto?

1ª Casa: Talvez eu tenha vivenciado mais dificuldades do que alegrias, isso é verdade. Além das dificuldades iniciais, ainda presenciei guerras e assaltos. Presenciei como tinham que esconder o gado e outros animais no meio da floresta, para que não fossem levados por bandos; como os homens formaram seu próprio grupo de segurança e ficavam de vigia do lado de fora, enquanto as mulheres passavam muitas noites sentadas perto das janelas com armas de caça através de onde elas espiavam pelas frestas se algum bandido se aproximava. Eu vivenciei a Revolta dos Mucker que aconteceu no Leonerhof (Sapiranga). Eu vi e ouvi os caixões atravessando as minhas portas, nos hoje gastos degraus. Ouvi o choro desconsolado da filha do meu dono quando levou para o sepultamento no cemitério lá embaixo, seu marido falecido por causa da perigosa varíola, ocasião na qual ninguém queria participar do seu sofrimento com medo de pegar a doença também. Mas meus habitantes e eu assistimos também a muitas alegrias. As crianças cresceram, as plantações prosperaram e deram boas colheitas. Divertimento e distração, sabiam como encontrar. As sociedades de canto e sociedades de tiro ao alvo foram fundadas e logo surgiu um salão onde se encontravam para dançar. É verdade (pág. 365 que até dançar era mais difícil porque nem todo o mundo possuía um par de sapatos e as pessoas perdiam os tamancos com facilidade na dança. Alguns amarravam bem seus chinelos ao pé ou simplesmente deixavam seu chinelo num canto e iam dançar de pé descalço. E quando foi lançada a moda de saias de armação e não se conseguiam as saias de sustentação usadas por baixo, faziam algo parecido, com bambus e folhas de palmeira. Claro que tinha a dificuldade de esta armação improvisada não se deixar dobrar para ser guardada.Certa vez uma moça, que estava se divertindo no salão, caiu e teve dificuldades em se ajeitar com essa saia.

2ª Casa: Eram tempos bem divertidos apesar das dificuldades! Eu também me lembro de diversões ingênuas que aconteceram dentro de minhas paredes e a minha volta. Cinco pessoas jovens habitavam com seus pais em meus quartos. Eles tinham que trabalhar duro, mas também pregavam peças e se divertiam com seus amigos. Portões inteiros eram retirados à noite e colocados em lugares bem diferentes, onde nem bem cabiam, ou carroças eram levadas à noite para o pátio do ferreiro, o qual passava longas horas do dia a procurar o defeito pelo qual a carroça teria sido levada a ele. Os rapazes iam pescar ou caçar e as moças conversavam enquanto faziam trabalhos manuais. Esfregavam as faces em folhas de figueira, para que ficassem bonitas e avermelhadas. Não havia pressa. Não havia passeios nem acidentes de carro, nenhum avião passava sobre nossas cabeças e nenhum barulho de rádio vinha de outras casas. Por isso, as pessoas tinham, ao anoitecer, tempo de reunir-se, à frente da casa, para cantar. Eu acho que nem hoje, nem há cem anos, os tempos são tão bons quanto eram quando eu era jovem.

1ª Casa: Ora, até minha juventude foi bonita, justamente porque foi difícil.

3ª Casa: Vocês podem me contar o que quiserem, mas melhor que agora os tempos não eram, não! Mesmo porque, hoje tudo é mais moderno e bem mais confortável. Tudo funciona com eletricidade, as pessoas não precisam de tanto esforço, as distâncias são menores desde que puderam usar o avião. E sim, os homens até já viajam para a lua. Pela televisão, temos cinema em casa, concertos através do nosso tocadiscos e até o culto dá para ouvir pelo rádio. O homem manda em tudo e sabe tudo e também suas casas estão ficando mais completas e confortáveis.

1ª Casa: Minha querida jovem casa! Tu falas como compreendes as coisas na tua falta de experiência. Quando se viu e vivenciou tanto quanto eu, então se sabe que o homem até hoje não sabe tudo e nem domina tudo e nem pode criar melhores tempos. O que ele ganhou com suas descobertas? Tem ele mais tempo desde que as coisas funcionam com eletricidade? Os homens ficaram mais felizes depois de tantas descobertas? Não destrói ele mesmo, nas guerras, todas as lindas casas que ele construiu? E, de que adianta ele ir até a lua se nem consegue resolver os problemas que temos na terra? Cada século traz consigo coisas bonitas e coisas pesadas, produz também pessoas boas e pessoas más, é um realizar e perecer. Bom e perfeito, Todo Poderoso e Onisciente é apenas o Senhor dos Tempos, o eterno Deus que fez o mundo. Os homens deveriam usar a criação de Deus e alegrar-se com ela. A falha humana está em tentar corrigir e substituir as obras de Deus.

Mas devemos terminar nossa conversa, que nossos moradores querem ir descansar. Nós desejamos vigiar seu sono e cumprir nosso destino segundo o qual nós lhes damos proteção dia e noite, provendo-os de forças para a luta diária pela vida.

C. Koetz