A aventura das viagens à América

Partindo da Alemanha em busca de uma vida melhor, corajosamente, aventuraram-se muitas famílias, deixando tudo para trás, indo rumo ao desconhecido em terras distantes, sem conhecerem ao certo as dificuldades que as aguardavam.

A Coroa Imperial Brasileira vendera uma imagem de sonho para convencer os alemães: um pacote fechado incluía passagem paga, lotes de terras, suprimentos, materiais de trabalho e animais, isenção de impostos por alguns anos, liberdade de culto e direito à cidadania. Com isso, eles deixavam de ser alemães para serem brasileiros. Assim, num misto de sonhos por realizar, fé, esperança e saudade, eles partiam para um mundo novo para ocuparem o solo brasileiro. No entanto, a terra era montanhosa, a mata fechada, o clima tropical, diferente do que conheciam, era iminente o perigo do ataque de primitivos ou de animais selvagens, a língua completamente estranha e as primeiras dificuldades eram enfrentadas logo em alto mar.

Mas a esperança de dias melhores era mais forte e fazia com que famílias inteiras, acompanhadas, na maioria, de filhos pequenos, enfrentassem a penosa, longa e, por vezes, perigosa viagem da Europa à América.

Os náufragos do “Cäcília” que colonizaram a “Baumschneis”

Considerando que os primeiros imigrantes alemães que posteriormente vieram habitar em Santa Maria do Mundo Novo eram, em grande parte, moradores da região de Baumschneis (Dois Irmãos), e que por isso a julgamos um celeiro da nossa estrutura genealógica, vamos contar um pouco da história daquela gente, retrocedendo ao ano de 1827, para confirmar as asperezas das viagens rumo à nova pátria, comentando os perigos enfrentados pelos passageiros do veleiro holandês Cäcília, que, anos mais tarde, aportaram na região da Baumschneis.

A 6 de janeiro de 1827, o veleiro Cäcília zarpou de Bremerhaven (porto de Bremen), trazendo a bordo grande leva de imigrantes, cerca de 300 colonos, procedentes da zona de Treveris, rumo ao Brasil, para a Província do Rio Grande do Sul, onde queriam estabelecer-se como agricultores.

Após seis dias de viagem, no dia 12 de janeiro, às 13h, os tripulantes do Cäcília foram surpreendidos por uma forte tempestade que, durante quase 24 horas, causou graves danos ao veleiro. Vinte colonos e dois marinheiros morreram afogados. Os mastros do Cäcília foram destruídos. O navio, então, era um destroço, pois flutuava sem mastro nem vela. Pouco tempo depois que cessou a tempestade, náufragos avistaram, na extremidade do horizonte, um grande navio inglês. Os homens tiraram os seus casacos, as mulheres arrancaram seus lenços da cabeça e usaram-nos como bandeiras, que, dando sinais, agitaram ao ar. (pag. 79) Lágrimas de comoção escorreram de todos os olhos. Até os velhos soldados, que não tinham tremido ante o rugir dos canhões, choraram naquele momento com as mulheres que, em sua alegria incontida, apertaram os filhos ao peito. O comandante desse navio mercante fez o reconhecimento e, depois de horas de viagem, chegam ao porto de Falmouth, no sul da Inglaterra.

No porto de Falmouth, o capitão do navio Cäcília que, como todos os dados i n d i c a m , era um homem muito cruel, vende o navio avariado e foge com o dinheiro adquirido e com as cauções dos colonos. Johannes Spindler, colono que esteve a bordo do Cäcília, quando se fixou na Inglaterra, escreveu uma carta destinada a familiares na Alemanha, onde retrata com clareza as dificuldades passadas pelos náufragos:

Carta de Johannes Spindler de 07/03/1828

“Muito querido e muito estimado irmão e senhora cunhada:

Não foi por má vontade que vos deixei esperar por notícias tanto tempo. Ao saberem em que situação me encontrei com minha família, me compreenderão certamente. Espero que minhas linhas encontrem todos vós de boa saúde, o que nos alegraria de todo coração. Também nós estamos bem e com saúde graças a Deus, mas muito descontentes com a nossa sorte.

Vocês se lembrarão de que fui a Bremen com minha família. Lá deixamos a pátria para encontrar uma nova no Brasil. No dia 06 de janeiro (1827) entramos no mar com bons ventos. Mas, diante da costa holandesa, fomos surpreendidos por uma horrível e desastrosa tempestade que nos atirou de um lado para outro, de uma hora do dia 12 até as doze horas do dia 13. Sofremos um naufrágio extraordinário. Nesta noite perdemos todos os três mastros. Dois marinheiros foram tragados pelas ondas, e mais de 20 dos nossos colonos morreram afogados. Todos os beliches foram destruídos. A água penetrou no navio, e quem não pôde sair imediatamente morreu afogado. Muitas almas, cheias de medo e desespero, esperavam, como as nossas, pela salvação. Quando a nossa desgraça parecia ser a maior, outro navio nos avistou e rebocou nossa carcaça destruída, com os sobreviventes para o porto da cidade de Fallmuth (Falmouth) na Inglaterra, onde ainda nos encontramos.

O capitão, simplesmente, vendeu o navio e desapareceu com o dinheiro e com a nossa caução que tivemos que depositar no banco de Amsterdam. Portanto, não temos agora nem barco, nem capitão, nem dinheiro.

A Inglaterra nos tem tratado bem, mas aqui há pouco lugar para nós, e acabou-se o dinheiro. Ainda não sabemos como vamos sair daqui. Fomos, já várias vezes, interrogados por agentes que nos querem levar para a América, mas nada se tem realizado. A Inglaterra não quer enviar gente para o Brasil. Temos, agora, esperança de ir para Filadélfia, mas, quando, só Deus saberá.

Temos um só desejo, querido irmão: deixe-me receber uma carta sua para saber que vocês estão bem de saúde e gostaria também de ouvir a sua opinião sobre o que acontece aí.

Querido irmão, peço comunicar o que temos passado a seu filho, padrinho de nosso Cristiano. O seu afilhado manda muitas lembranças. E se me quiser escrever, endereça sua carta via Londres a Falmouth, ao cuidado de William Reavel, ‘Robmakerin Falmouth’, mas (pag 81) escreva em letras latinas. Lembranças a todos, de todo coração,

(ass.) Johannes Spindler

Fallmuth (Falmouth), 07 de março de 1828

P.S. Querido irmão, leia esta carta para nossa irmã e faze-a conhecer o que sofremos no mar. O afilhado dela dormiu durante toda a tempestade e não percebeu nada. Ele está bem, com boa saúde e manda lembranças à sua madrinha, como todos os meus filhos.”

Estando na Inglaterra, com facilidade os alemães viajantes conseguiram trabalho remunerado nesse país de indústria e comércio e aprenderam o essencial da língua inglesa. Conta-se que, durante essa permanência na Inglaterra, um certo dia, estando as mulheres alemãs a lavar roupa na praça, passou por ali, passeando, despreocupadamente, o capitão do “Cäcília”, ignorando que essas lavadeiras eram as passageiras do seu ex-navio. Elas, porém, logo reconheceram o comandante que vendeu o veleiro e fugiu com o dinheiro e com as cauções dos colonos, e combinaram uma vingança original. Sob o comando da firme mão da senhora Bohnemberger, todas as lavadeiras puseram-se a surrar o capitão com a roupa molhada, provocando riso e manifestação de aplauso dos ingleses que assistiam ao espetáculo. Como camaradas, os ex-náufragos se mantinham unidos nessa estranha cidade portuária e, aos domingos, reuniam-se para poderem entreterse, na sua língua materna, de modo fluente e alegre. Embora não tivessem atingido a meta de sua viagem, podiam eles, contudo, dizer que iam bem em suas novas condições de vida e, pouco a pouco, foram se conformando com o seu destino.

Em Falmouth, porém, os ex-náufragos do Cäcília acabaram se tornando algo embaraçoso para a cidade. Portanto, assim como os colonos, que desejavam sair daquela cidade, os ingleses também esperavam a saída dos alemães de Falmouth.

Mas, em breve, tanto os colonos quanto os ingleses foram favorecidos. Em dezembro de 1828, quando os ex-náufragos já se ocupavam com o plano de fixarem definitivamente nessa terra sua sede, tornando-se cidadãos ingleses, chega a Falmouth um navio chamado James Laing, sob o comando do capitão Sughure, que levaria os imigrantes alemães ao Brasil, como está claro na notícia do Royal Cornwall Gazette, transcrita abaixo:

“Chegou a Falmouth, quinta-feira última, um navio muito elegante com o propósito de tomar a bordo os emigrantes alemães para o Brasil que, durante tanto tempo, têm residido nesta praça

O navio James Laing foi posto à disposição dos colonos alemães pelo poderoso Felisberto Caldeira Brant, o Marquês de Barbacena, de descendência alemã, diplomata brasileiro da época, que, em passagem por Falmouth, em 24 de setembro de 1828, quando acompanhava a rainha D. Maria II, que contava apenas nove anos de idade, filha de D. Pedro I, pôde constatar o triste estado em que se encontrava aquela leva de (pag. 83) imigrantes que tinha por destino o Brasil.

Assim, em 03 de janeiro de 1829, os alemães que viajaram a bordo do Cäcília partiram em direção ao Brasil, chegando no Rio de Janeiro em 19 de fevereiro de 1829. Já em 10 de abril de 1829, 342 passageiros seguiram viagem com destino a Porto Alegre, no costeiro Florinda, e lá chegaram em maio do mesmo ano. Por fim, foram registrados como chegados a São Leopoldo também em maio de 1829.

Muitos relatos dão conta de que Amélia Von Leuchtenberg, na época, futura segunda imperatriz do Brasil, teria sido a responsável pela cessão da embarcação que levou os imigrantes alemães de Falmouth ao Brasil, mas, baseando-nos em dados descritos por Henrique Handelmann, em sua obra História do Brasil, verificamos a impossibilidade deste fato:

“Quando a filha de D. Pedro, a rainha D. Maria II, depois de muito demorada viagem de mar, chegou a Gibraltar, a 02 de setembro de 1828, e o seu guia, o Marquês de Barbacena, verificou ali, pelos jornais, a atitude dúbia com que a Áustria considerava a usurpação de D. Miguel, tomou o Marquês a resolução de conduzir a jovem soberana para Londres, em vez de Viena, e a colocou sob a proteção da coroa da Inglaterra. Assim o fez; a 24 de setembro, desembarcou, D. Maria em Falmouth e foi ali, assim como na corte de Windsor, acolhida com todas as honras, como rainha reinante

Neste desembarque em Falmouth, o Marquês de Barbacena percebeu o estado em que se encontravam os imigrantes alemães que estiveram a bordo do Cäcília e decidiu pôr à disposição deles o veleiro James Laing, que chegou a Falmouth em dezembro de 1828.

Um ano mais tarde, em setembro de 1829, o Marquês de Barbacena, novamente acompanhando D. Maria II, viajava para o Brasil, conduzindo com eles Amélia von Leuchtenberg, noiva de D. Pedro I. Assim, eles passaram por Falmouth, sem, no entanto, entrarem no porto. Handelmann relata o episódio:

“É que ele (D. Pedro I) havia feito regressar sua filha, a rainha D. Maria II, de Portugal, a qual, diante da atitude do Ministro Wellington, não teria mais vantagem em residir em Londres; e deveria ser o Marquês de Barbacena de novo o seu acompanhador; ao mesmo tempo, era ele encarregado de honra de conduzir uma noiva para D. Pedro, a jovem e bela princesa Amélia von Leuchtenberg, filha do ex-Vice-rei da Itália, Eugênio de Beauharnais

Como, nesta viagem, D. Maria II, Amélia von Leuchtenberg e o Marquês de Barbacena não pararam no porto de Falmouth, é simplesmente impossível que a noiva de D. Pedro I, Amélia von Leuchtenberg, tenha disponibilizado uma embarcação para os ex-náufragos do Cäcília.

Um outro equívoco na história oral da imigração alemã é o fato de terem os imigrantes alemães, viajantes do Cäcília, chegado ao Brasil em 29 de setembro de 1829, sendo essa data, inclusive, consagrada como “Dia de São Miguel Arcanjo”, que, ainda hoje, em Dois Irmãos (Baumschneis), é festejada como Kerb de São Miguel (Michelskerb). Todavia, podemos observar que, de acordo com os Avisos do Governo, de 18 de março a 10 de abril de 1829, e conforme o que já citamos anteriormente, os colonos chegaram ao Rio de Janeiro e a São Leopoldo em fevereiro e maio de 1829, respectivamente. Pode-se, talvez, considerar que os imigrantes, que estiveram a bordo do Cäcília, tenham permanecido em São Leopoldo por quatro meses, antes de se deslocarem à Baumschneis, mas é de estranhar que eles tenham esperado tanto tempo para mudarem de cidade, sendo que não estavam assentados.

Fica a dúvida, se houve ou não uma promessa dos náufragos, quando estiveram em perigo, de doravante todos os anos lembrarem com gratidão a sua salvação com a celebração do dia de São Miguel Arcanjo (29 de setembro), já que é hoje essa a argumentação, com a qual todos os anos se comemora esse dia com uma Kerb em Dois Irmãos, bem como fica a pergunta: Por que justamente o dia de São Miguel? (pag. 85) Analisando um trecho da segunda carta que o mesmo Johannes Spindler escreveu para seus familiares, em 23 de maio de 1845, quando já estava no Brasil há mais de dezesseis anos, percebemos dados que confirmam a chegada dos ex-náufragos do Cäcília a Porto Alegre em maio de 1829. Spindler relata a morte da esposa, e esclarece que ela faleceu ainda no costeiro Florinda, antes de chegarem a Porto Alegre.

“Sobre minha pessoa e sobre minha família quero acrescentar o seguinte:

 ainda antes de eu deixar, com os meus, o barco que nos havia conduzido do Rio de Janeiro a Porto Alegre, faleceu minha querida mulher; ela foi enterrada no dia seguinte, isto é, a 16 de maio, em Porto Alegre. Poucos dias depois, vim com os meus cinco filhos ao lugar onde ainda hoje me encontro. Não mais casei. Acontecimentos vários, bons e maus, preencheram minha vida posterior, mas tudo está longe demais na minha memória que me custaria evocá-lo do passado, máxime, estando eu agora satisfeito com o que o céu me proporcionou.”

São muitas as versões envolvendo a história da imigração alemã no Rio Grande do Sul e, particularmente, no que diz respeito ao naufrágio do navio Cäcília, mas, baseando-nos em estudos nos Anais do 6.º Simpósio de História da Imigração e Colonização Alemãs no Rio Grande do Sul, de 1984, pudemos expor novas afirmações, obtidas através de minuciosas pesquisas, o que nos permitiu uma versão que julgamos um pouco mais próxima da realidade.

Das 100 famílias que desembarcaram no Rio Grande do Sul, cerca de 20 fixaram residência, em seguida, na Baumschneis. Entre as que permaneceram lá estão os Becker, Brurfel, Kielling, Marmitt, Sander, Schmidt, Schüler, Wille e Wingert. As demais famílias espalharam-se para outras colônias e hoje seus descendentes podem ser encontrados em toda a região do Vale dos Sinos.

Anos mais tarde, por volta de 1852, vieram de Dois Irmãos para Santa Maria do Mundo Novo, alguns dos primeiros colonizadores desta região, constituindo a ascendência desse vale.

O Naufrágio da Família Volkart

Os irmãos Arnold, Heinrich, Ferdinand e Karl Volkart partiram de Hamburg, em 1852, no navio veleiro Luise Emilie, que se acidentou na costa inglesa. Das 84 pessoas que viajavam no navio, 45 morreram. Entre os sobreviventes estavam os irmãos Volkart, que, mais tarde, se fixaram em Taquara, Três Coroas e arredores, onde hoje ainda residem seus descendentes. Os irmãos Volkart se originaram da Suíça. Um deles, Karl, já estava residindo no Brasil durante 10 anos, no Estado da Bahia. Retornando à Alemanha, casou-se com a filha de um missionário, chamada Babeli, que, no naufrágio, encontrou sua sepultura entre as ondas.

O que segue é uma carta escrita por Arnold Volkart, endereçada aos seus familiares na Alemanha, descrevendo, de forma muito clara, as adversidades enfrentadas na viagem que o levaria ao Brasil, as dificuldades, os medos, a angústia, o perigo. Aquele que a lê, revive a exata dimensão da incerteza e dos horrores a que se expuseram os imigrantes até que chegassem à nova Pátria.

Casa construída pelo imigrante suíço Arnold Volkart, em 1881, em Santa Cristina do Pinhal Detalhe do portal de entrada da casa de Arnold Volkart

 (pag. 87)

A carta tem o seguinte teor:

“Ao sul da costa inglesa, dia 31 de dezembro de 1852

Sempre amados pais, irmãos, parentes e conhecidos:

Vocês receberão esta carta inesperadamente mas, não felicidade e sim infelicidade e dor, tornaram necessária a escrita destas linhas para noticiar uma cena horrível. Talvez vocês, se foram curiosos, já leram nos jornais que, nestes últimos tempos, muitos navios naufragaram. Mas, por certo, não sabiam que também conosco aconteceu o mesmo.

Como vocês sabem, pela última carta que enviamos de Hamburgo, imaginávamos a coisa toda um pouco melhor e tínhamos esperança até, que fosse tudo bem. Mas não, foi exatamente o contrário do que sempre até agora, e já em casa, pensávamos que não deveria ser. Tudo andou, ao invés de para frente, pelo contrário, como um arauto de acidente o qual nós não atentamos.

Como vocês sabem, nós embarcamos no navio Luise Emilie no dia 27 de novembro e saímos do porto no dia 2 de dezembro até Glückstadt, no Rio Elbe, onde nós aguardamos por bons ventos até o dia 7 de dezembro. De lá fomos até Cuxhaven (nome da última cidade no continente antes do Mar do Norte) de onde tivemos que esperar mudar o vento até o dia 10 de dezembro. Neste dia, um dia de sol, o tempo estava bem claro e nós velejamos em direção ao mar do Norte. Durante duas horas ainda estávamos no encontro das águas do rio Elbe com as águas do Mar do Norte. Assim que entramos nas águas do Mar do Norte, logo as pessoas se sentiram mal com a doença do mar, para o que eu não tenho palavras que figurem como as pessoas se sentem neste momento. Só sei dizer que apenas isto é suficiente para fazer com que se perca a vontade de prosseguir a viagem para a América e se tenha vontade de voltar se fosse possível. A gente não sabe como se ajudar, não consegue mais ser dono de si e fica como se fosse criança, assim que todos estavam a ponto de falecer a qualquer momento. Isto durou de três a quatro dias para alguns ou até uma semana para outros, conforme o tempo.

Nós tínhamos sempre dias chuvosos e ventos impróprios, tanto que acreditamos que no dia 19 de dezembro, às 4 horas da manhã, soasse nosso último minuto de vida. Estávamos todos quietos, deitados nas nossas camas e, de repente, uma enorme onda do mar se abateu sobre o nosso navio, jogando muitos de nós das camas para o chão e atirando as caixas e utensílios umas contra as outras, numa grande mistura. E de cima, pela escotilha, entrou muita água no espaço entremeio. Não fosse a suficiente rapidez de abrir uma escotilha lateral para que a água vertesse novamente para fora, vocês certamente não teriam de nós nem ao menos esta carta. Por estes dias, vimos daqui e dali mastros de outros navios afundados no Mar do Norte por esta época.

Com isso, vocês podem imaginar como estava o nosso ânimo e os marinheiros começaram a rir e diziam o que ainda poderia acontecer, o que de fato tornou-se realidade. Nós teríamos ainda mais para agüentar. O dia 22 de dezembro foi o dia mais bonito que tivemos no Mar do Norte, o (pag89) qual nos renovou as esperanças por melhor tempo e vento. Mais ou menos neste dia entramos no canal marítimo entre Inglaterra e França. Era este o trecho mais perigoso que teríamos que ultrapassar. Neste ínterim começou a ventar ao contrário e sempre mais forte, o que fez com que navegássemos para lá e para cá, quase marcha à ré, quase para frente. Às vezes, víamos terra, outras vezes nada além de mar e céu. Desta maneira as ondas nos empurraram tiranamente prá lá e prá cá até o Natal, dia 26 de dezembro, quando acreditávamos já estarmos no oceano Atlântico, até onde a previsão de viagem com bom tempo era de quatro dias, nós que já viajáramos quatro semanas.

Neste dia, ao anoitecer e durante toda a noite, o vento ficou cada vez mais forte e, entre 6 e 7 horas da manhã, transformou-se num dos mais fortes furacões. Todos nós ainda estávamos deitados nas nossas camas, porque ali ainda era, sempre, o lugar mais seguro para não ser jogado de um lado para outro ou ser atropelado e amassado por uma das caixas de bagagem, que rolavam de um lado para outro como se fossem bolinhas de gude. Isto, por causa das ondas que eram seguidas umas às outras cilíndricamente, assim que não sabíamos o que poderia acontecer a qualquer momento. Ninguém podia subir ao convés, no qual estaríamos no caminho dos marinheiros e ainda corríamos o perigo de sermos arrastados pelas ondas para fora do navio. De repente, o nosso navio encalhou em chão firme, mais ou menos a quinze minutos da costa inglesa e a cada onda o navio se erguia e foi trazido até mais ou menos 20 passos, na terra firme.

Lá estava o navio firme na areia, agitado como um caniço por ondas furiosas e pelo temporal, prá lá e prá cá e a água como um rio, entrava no convés para o espaço intermediário, assim que a gente estava tão seguro em cima, no convés, como embaixo, nas camas. Indescritível eram os gritos e os lamentos. Os homens do navio providenciaram logo o material de sobrevivência, antes disso não deixaram ninguém subir ao convés. Henrich e Ferdinand já estavam no convés às 4 ou 5 horas da madrugada e não se arriscaram a descer, porque esperavam a qualquer momento acontecer o pior. Finalmente, Ferdinand me chamou para cima, porque ainda estava deitado na cama esperando chegar minha última hora a qualquer minuto. Assim que eu levantei em calça, camisa e sapato e subi para o convés, uma onda entrou e me jogou ao chão e eu fiquei molhado como se já tivesse estado dentro do mar. Os homens do navio estavam todos ocupados em providenciar material de salvamento e jogaram cordas a bordo dos botes de salvamento que os ingleses já estavam trazendo para nos tirar dali. As pessoas foram chamadas para cima no convés, mas tudo era uma demora confusa e excitante. Cada qual pensava que o navio ficaria preso ali e que se poderia, quando o temporal se acalmasse, descer do navio e caminhar a pés secos até terra firme. Ninguém queria se arriscar na água espumejante. Um homem deixou-se amarrar por primeiro nas cordas, foi atirado na água e felizmente conseguiu chegar bem até a praia.

Um segundo homem também deixou-se amarrar nas cordas e conseguiu sair. Eu fui o terceiro, deixei-me baixar pela última corda e cheguei bem à terra. Então, eu queria ajudar, a puxar mais pessoas para a praia, mas os ingleses me mandaram para uma casa ali perto para colocar roupas secas, mas eu esperei até que Ferdinand e Heinrich se jogassem na água e chegassem bem à terra firme. Nós fomos os únicos que se deixaram descer por essas cordas, pois todos tinham muito medo e esperaram por melhorar o tempo. Eu mesmo acreditava firmemente que tudo ficaria melhor e que todos se salvariam. Nós não conseguíamos fazer nada, pois estávamos com frio, molhados e o furacão nos atirava para o chão. Desta maneira fomos até a casa mais próxima nos aquecer, na esperança que Karl e sua querida esposa Babeli chegassem logo depois. Mas, que azar, eu nem deveria me atrever a dizer que Karl chegou depois de cinco ou dez minutos, sozinho, chorando desesperadamente, dizendo: “Quem se salvou, está vivo, agora não vem mais ninguém e Babeli teve sua melhor parte; melhor ainda se tivéssemos ficado todos com ela”. O navio havia se quebrado em milhares e milhares de pedacinhos e todos os nossos pertences e patrimônio foram roubados pelas ondas do mar.

Nem ao menos dinheiro ou escritos foram salvos, porque cada qual levantou-se de sua cama como estava e se jogou ao mar, seminu ou desnudo, nem se preocupando com nada mais, pois cada um pensou certo de que o navio fosse ficar parado ali até passar o furacão e então pudéssemos buscar n